sábado, 15 de novembro de 2008

Passeio Socrático

--------
---
--------
Texto enviado por Rosa Maria Almeida dos Santos – Pelotas/RS
-----
------
-----

Você sabe o que é um passeio socrático?
----------
*Frei Betto
----
---
Ao viajar pelo Oriente, mantive contatos com monges do Tibete, da Mongólia, do Japão e da China. Eram homens serenos, comedidos, recolhidos em paz em seus mantos cor de açafrão. Outro dia, eu observava o movimento do aeroporto de São Paulo: a sala de espera cheia de executivos com telefones celulares, preocupados, ansiosos, geralmente comendo mais do que deviam. Com certeza, já haviam tomado café da manhã em casa, mas como a companhia aérea oferecia um outro café, todos comiam vorazmente. Aquilo me fez refletir: 'Qual dos dois modelos produz felicidade?'
--------------
Encontrei Daniela, 10 anos, no elevador, às nove da manhã, e perguntei:
-------
- Não foi à aula? Ela respondeu:
----------
Não, tenho aula à tarde.
------------
Comemorei:
-----------
Que bom! Então de manhã você pode brincar, dormir até mais tarde.
----------
Não, retrucou ela, tenho tanta coisa de manhã...
--------
Que tanta coisa?, perguntei.
---------------
Aulas de inglês, de balé, de pintura, natação, e começou a elencar seu programa de garota robotizada. Fiquei pensando: 'Que pena, a Daniela não disse: 'Tenho aula de meditação!'
---------
Estamos construindo super-homens e super-mulheres totalmente equipados, mas emocionalmente infantilizados. Por isso as empresas consideram agora que, mais importante que o QI, é a IE, a Inteligência Emocional. Não adianta ser um superexecutivo se não se consegue se relacionar com as pessoas. Ora, como seria importante aos currículos escolares incluírem aulas de meditação!
-------------
Uma progressista cidade do interior de São Paulo tinha, em 1960, seis livrarias e uma academia de ginástica; hoje, tem sessenta academias de ginástica e três livrarias! Não tenho nada contra malhar o corpo, mas me preocupo com a desproporção em relação à malhação do espírito. Acho ótimo, vamos todos morrer esbeltos:
-----------
- Como estava o defunto?
----------
Olha, uma maravilha, não tinha uma celulite!
--------
Mas como fica a questão da subjetividade? Da espiritualidade? Da ociosidade amorosa?
---------
Outrora, falava-se em realidade: análise da realidade, inserir-se na realidade, conhecer a realidade. Hoje, a palavra é virtualidade. Tudo é virtual. Pode-se fazer sexo virtual pela internet: não se pega aids, não há envolvimento emocional, controla-se no mouse.
--------
Trancado em seu quarto, em Brasília, um homem pode ter uma amiga íntima em Tóquio, sem nenhuma preocupação de conhecer o seu vizinho de prédio ou de quadra! Entramos na virtualidade de todos os valores, não há compromisso com o real! É muito grave esse processo de abstração da linguagem, de sentimentos: somos místicos virtuais, religiosos virtuais, cidadãos virtuais.
-----------
Enquanto isso, a realidade vai por outro lado, pois somos também eticamente virtuais...
------
Cultura é o refinamento do espírito.
---------
Televisão, no Brasil - com raras e honrosas exceções -, é um problema: a cada semana que passa, temos a sensação de que ficamos um pouco menos cultos. A palavra hoje é 'entretenimento' ; domingo, então, é o dia nacional da imbecilização coletiva. Imbecil o apresentador, imbecil quem vai lá e se apresenta no palco, imbecil quem perde a tarde diante da tela. Como a publicidade não consegue vender felicidade, passa a ilusão de que felicidade é o resultado da soma de prazeres: 'Se tomar este refrigerante, vestir este tênis,­ usar esta camisa, comprar este carro, você chega lá!'
---------
O problema é que, em geral, não se chega! Quem se deixa iludir desenvolve de tal maneira o desejo, que acaba precisando de um analista. Ou de remédios. Quem resiste, se sente louco porque não faz parte da neurose coletiva. Os psicanalistas - que também desejam 'ter' e não se satisfazem com o que são, o que amam, o que fazem - tentam descobrir o que fazer com o desejo dos seus pacientes.
---------
Eu, que não sou da área, posso me dar o direito de apresentar uma sugestão. Acho que só há uma saída: virar o desejo para dentro. O grande desafio é gostar de si mesmo, começar a ver o quanto é bom ser livre de todo esse condicionamento globalizante, neoliberal, consumista. Assim, pode-se viver melhor. Aliás, para uma boa saúde mental, três requisitos são indispensáveis: amizades, auto-estima, ausência de estresse.
----------
Há uma lógica religiosa no consumismo pós-moderno. Se alguém vai à Europa e visita uma pequena cidade onde há uma catedral, deve procurar saber a história daquela cidade - a catedral é o sinal de que ela tem história. Na Idade Média, as cidades adquiriam status construindo uma catedral; hoje, no Brasil, constrói-se um shopping center. É curioso: a maioria dos shopping centers tem linhas arquitetônicas de catedrais estilizadas; neles não se pode ir de qualquer maneira, é preciso vestir roupa de missa de domingos. E ali dentro sente-se uma sensação paradisíaca: não há mendigos, crianças de rua, sujeira pelas calçadas... Entra-se naqueles claustros ao som do gregoriano pós-moderno, aquela musiquinha de esperar dentista.
----------
Observam-se os vários nichos, todas aquelas capelas com os veneráveis objetos de consumo, acolitados por belas sacerdotisas. Quem pode comprar à vista, sente-se no reino dos céus, como os que outrora foram convencidos a comprar a própria absolvição. Deve-se passar cheque pré-datado, pagar a crédito, entrar no cheque especial, sente-se no purgatório. Mas se não pode comprar, certamente vai se sentir no inferno... Felizmente, terminam todos na eucaristia pós-moderna, irmanados na mesma mesa, com o mesmo suco e o mesmo hambúrguer do McDonald's...
---------
Costumo advertir os balconistas que me cercam à portadas lojas:
-------------
Estou apenas fazendo um passeio socrático.
-----------
Diante de seus olhares espantados, explico:
--------
Sócrates, filósofo grego, também gostava de descansar a cabeça percorrendo o centro comercial de Atenas. Quando vendedores como vocês o assediavam, ele respondia: 'Estou apenas observando quanta coisa existe de que não preciso para ser feliz.'
-----
***
------
*Frei Betto - Frei dominicano. Escritor. Autor, em parceria com Luís Fernando Veríssimo e outros, de 'O desafio ético' (Editora Garamond), entre outros livros.
---------
-------
-----
-----
Foto: Banco de imagens da web

Um comentário:

mob disse...

Evidentemente o texto de Frei Betto coloca foco em questões pertinentes de olhar crítico, mas gostaria de fazer uma observação.

Penso que sua avaliação aos psicanalistas é de uma leitura generalizada, portanto equivocada e contraditória, pois que a generalização é justamente um dos traços pertinentes as bases da mentalidade ao qual ele tenta criticar.